CONTOS – POEMAS - PERSONAGENS

 

BEBEDOURO DOS ANIMAIS (Luiz Carlindo Arruda Kastein)

 

Este conto mistura realidade e ficção. Vereador e bebedouro existiram, o último resistiu ao tempo,  permanecendo firme ao lado da estação, como que esperando ouvir novamente o apito do guarda trem, a comandar a saída do comboio, que um dia partiu para nunca mais voltar.

1948 - Um ano diferente para Descalvado. Desde 1937, quando Vargas instituiu o Estado Novo, que não se elegia uma Câmara Municipal. A cidade durante anos foi governada por prefeitos nomeados. A 2ª Grande Guerra Mundial tinha terminado apenas três anos antes, mas ainda deixava profunda, suas cicatrizes. Mas 1948 trazia de volta a democracia. Descalvado elegeria a maior Câmara de sua história. Nada menos que 21 Vereadores, entre efetivos e suplentes seriam  empossados pelo MM. Juiz da Comarca, em 1º de janeiro. O Plenário viria reunir Vereadores ilustres, oradores eloqüentes, escolhidos dentre as maiores personalidades da época e que apresentariam projetos de grandeza para o Município, tal como a criação do Ginásio Estadual, trazendo um grande benefício para os estudantes, que até então, viajavam diariamente por trem até Pirassununga. Na Câmara, um Vereador se destacaria por sua simplicidade, seus pronunciamentos polêmicos e sua oratória controvertida, além de cultivar um sonho: a proteção aos animais. Talvez tenha sido precursor da Sociedade Protetora dos Animais. Não se conformou quando em pronunciamento, um colega disse que muitos assuntos  só poderiam ser resolvidos com reio nas costas. Logo aparteou: “reio nem em costa de animal, quando mais de homem, muito menos de edil”. E deste ideal, de proteger os animais, nasceu uma obsessão: A construção de uma obra que perpetuasse seu nome e seu interesse nos animais. A proposta nasceu concreta na Câmara: um bebedouro para animais ao lado da estação ferroviária. Foi acolhida pelo Plenário e pelo Prefeito. Mãos a obra, os funcionários municipais construíram o bebedouro. Dia de inauguração. A cidade amanheceu em festa. Feriado municipal, a população vestida com roupa de domingo, Prefeito e Vereadores, Juiz, Promotor, Delegado, o Padre e os coroinhas, a Banda Santa Cecília, que não poderia faltar, a entoar seus dobrados. Rojões, bandeiras. O povo se comprimindo no largo da estação, muitas palmas. O orador não poderia ser outro, senão o ilustre Vereador, autor da propositura. No seu jeito simples, discurso decorado, empunha o microfone da rádio propaganda, fala palavras bonitas, emudece a população. Terminada a oratória, emocionado, não resiste a um ato heróico: retira o paletó, afrouxa a gravata, arregaça as mangas da camisa, debruça-se sobre o bebedouro. Mergulha as mãos suadas de emoção nas águas límpidas,  enche-as com o precioso líquido, levando à boca e bebendo como o mais sedento dos seres. Depois vira-se para o povo e brada em bom tom: “Está inaugurado o bebedouro dos animais”.  Pobre infeliz. Não faltou presença de espírito a um anônimo opositor político, que em meio ao povo, encobrindo o som da banda, o espoucar dos rojões, os aplausos, a gritaria, berra a plenos pulmões: “Claro, o demagogo Vereador foi  o primeiro animal a beber”. O Vereador, rubro, estourando de raiva, fez que não ouviu, apertou as mãos do Prefeito, do Juiz e de quem mais pôde. Pediu que fosse jogada água benta, que os animais bebessem, que o povo cantasse, que a banda tocasse, enfim, que algo acontecesse. Mas nada acontecia. Uma gargalhada geral para encerrar uma solenidade tão sonhada. Ah, ilustre Vereador, que como a maioria dos políticos, deveria ter se lembrado do ditado popular: “Muitas vezes, as palavras valem prata, mas o silêncio, vale ouro...” Hoje quem quiser, pode conhecer o bebedouro que fica na rua D. Pedro II, bem ao lado da futura praça “Florência Maria de Jesus” perto da estação ferroviária. Um patrimônio histórico que o tempo não destruiu. As palavras do Vereador se perderam ao vento, mas sua vontade se consolidou: até hoje, quase 50 anos depois, os animais ainda saciam sua sede no bebedouro que ele deveria ter inaugurado...calado. 

 

PÉROLAS DA POLÍTICA (Luiz Carlindo Arruda Kastein)

Alguns ditos populares: - “Palavras valem prata mas o silêncio muitas vezes tem seu peso em ouro” e  “Em boca fechada não entra mosca”. Por que haveríamos de começar nossa crônica com tais provérbios?  Justifico: Os políticos deixam passagens  cômicas que acabam por ficar registradas nos anais da história. Vamos contar algumas pérolas, lembrando que qualquer semelhança com pessoas ou fatos da vida real não passam de mera coincidência...

- A história já começa as avessas. Quando da posse da primeira Câmara em 1866, o Secretário não pode assumir porque se encontrava na Guerra do Paraguai, onde  foi preso por insubordinação.

 - Início do século. Os vereadores deveriam decidir se o comércio ficaria aberto ou fechado aos domingos. Não há acordo. Levanta um vereador e propõe: “Achei a solução: o comércio abre somente meia porta aos domingos...”

- No ato inaugural, em sua oratória, o Vereador diz: “Está inaugurado o bebedouro dos animais”. Em seguida ele próprio bebe da água, quando um adversário político grita: “Sim, este foi o primeiro animal a beber...”

- No Plenário o Vereador ao proferir brilhante oratória: “Eu falo com o coração entre os dentes...”

- Na eleição da Mesa da Câmara, um vereador desconfiado da fidelidade de outro  edil de seu grupo,  fez uma pequena marca na cédula que entregou a ele. Apurado os votos, gritou o vereador responsável pela golpe baixo: “Existe um traidor entre nós”, ao que retrucou de imediato o outro: “Sois vós”.

- Muita discussão na Câmara. Levanta um vereador e grita: “Nesta Câmara só se vê cenas de pugilato e palavras de baixo calão”.

- O Vereador usava a Tribuna fazendo com eloqüência o seu pronunciamento. O adversário político em aparte: - “Protesto, Sr. Vereador!”. O Orador revida: - “O edil vai protestar no ... do protestante.”

- O Secretário da Mesa lê o telegrama endereçado ao Presidente: “SAUDAÇÕES PT” (que significa ponto na grafia telegráfica). A Presidência retruca: “Senhor Secretário só leia correspondências enviadas pelo PDS, arquive as do PT”.

- O Vereador resolve ditar um ofício ao Secretário Administrativo: Escreve aí: “Descalvado, 3 de março de 1950”. “Pronto, o resto você faz...”

- O Vereador preocupado que a Prefeitura não procedia a entrega de moradias populares: “ É preciso urgência, pois muitos residem em casas de tapioca... (acreditamos que ele queria se referir a taipa (pau a pique) e não tapioca (goma que se extrai da mandioca)...

- Um Vereador também ao Secretário Administrativo quando tinha urgência na entrega pelo correio de uma correspondência: “Escreve aí no envelope – três vezes urgente, para chegar mais rápido...”

- Havia também um Vereador que gostava de usar abreviaturas, e acaba escrevendo tudo por extenso de forma esquisita. Exemplo: “ também”...

- O Vereador irritado com outro que solicitava providências urgentes: “Só se eu passar um fax para Deus”...

- O Vereador que gostava da colocação pelo Secretario Administrativo, dos tratamentos: Ilustríssimo (Ilmo.) e Excelentíssimo (Exmo.) antecedendo aos nomes de autoridades, resolveu proceder da mesma forma ao endereçar seus cartões de Natal: “Excelentíssima Senhora Dona Câmara Municipal”, “Ilustríssima Senhora Dona Santa Casa”; “Excelentíssimo Senhor Executivo”...

- O Secretário da Mesa que lia para o Plenário as correspondências da maneira tal e qual eram abreviadas: Esmo De Erre (que seria Exmo. Dr. - Excelentíssimo Doutor); Ilmo Esse Erre (que seria Ilmo. Sr. - Ilustríssimo Senhor)...

- O Vereador ao usar a Tribuna da Câmara: “Uso essa Tribunda”...

- O Vereador soletrando no telefone seu endereço: Coronel vira “CEL”, W é “Vezão”, K é “IPISILÃO”...

- Existiu também aquele Vereador que requereu ao Presidente para “oficiar um ofício...”

- O Prefeito não concedia aumento aos funcionários, o Vereador em sua eloqüente oratória propôs ao funcionalismo que “caçasse rolas para não passar fome”...

- Os Vereadores aprovaram lei do Prefeito contratando um novo fiscal. Este muito rigoroso no exercício do cargo, provocou a revolta de alguns munícipes que foram à Câmara reclamar. Um vereador mais exaltado logo disse: “Num esquenta não, si nóis contrata, nóis distrata...(provavelmente ele queria dizer: se nós contratamos, nós descontratamos...)

- Certa feita a Câmara aprovou lei criando um crédito especial destinado ao pagamento de fotografias para obtenção de título de eleitor pelos munícipes sem recursos. Somente depois de sancionada pelo Prefeito é que descobriram que os títulos não necessitavam mais de foto...

- Outro Vereador ao fazer sua saudação no início da oratória: “Senhor Presidente, Senhores Vereadores, Senhores Povo...”

- Houve também o Vereador que ameaçado de ter seu mandato cassado disse: “Como vocês vão me cassar se eu não sou nem tatu, nem capivara...”

- O Presidente ao colocar em votação uma propositura, na forma regimental deve dizer aos vereadores: “Quem for a favor, fique como está, quem não for, favor se levantar”. Houve quem dissesse: “quem fô a favô, fica cumu tá, quem não fô, favô se levantá”...

- Houve também o vereador que propôs em oratória a criação do “Clube dos Seresteiros da Secretaria da Agricultura (?) e a compra do trem bala para ligar Descalvado ao Pântano.”

- Mas não são só os Vereadores: O Coronel do Exército ligou para a Câmara querendo falar com o Presidente que não se encontrava no momento. A atendente anotou o recado: “Ligá pro garda do quarté”...

- Alguém adentra na Câmara para falar com um funcionário.

A atendente pergunta a quem deve anunciar.

O cidadão responde:

- É o Célio.

A atendente no ramal telefônico com o funcionário:

-         El Célio deseja falar com o senhor..

- E para encerrar vamos contar uma do Prefeito que foi à Câmara Municipal, prestar contas de sua viagem a São Paulo:  “Senhores Vereadores: Tendo tido estado na capital do estado...”

UM DOMINGO NO DESCALVADO DE OUTROS TEMPOS...

(FRANCISCO B. LÍCIO escreveu este conto sobre Descalvado dos anos 20 e 30 no Jornal “O Comércio” em 1970)

 

            Ah! O velho Descalvado de outros tempos, uma cidadezinha simpática, pacata, tranqüila, com seus hábitos próprios, decantados com o correr dos anos suas usanças, suas figuras tradicionais...  Era por aquele tempo, idos da segunda e terceira década do século, quando a velha cidadezinha que se aproximava de seu centenário, era a “nossa” cidade, e nós fazíamos parte dela, tanto quanto ela o fazia de nós. Identificamo-nos, ambos, numa simbiose estranha, num conúbio indissolúvel! A nós nos parecia que o tempo estava solidificado e que tudo era estático; e a sua população que não se alterava nunca, seus prédios sempre os mesmos, como que vindos da aurora do mundo, já tisnado pela pátina conúbio do tempo; com os seus imponentes casarões, ainda renascentes do Império e do fastíio econômico da cidade; e os seus costumes que não se modificavam nunca. As festas tradicionais, as famosas quermesses; as figuras tradicionais; as famosas quermesses; as figuras tradicionais dos velhos políticos, entidades majestosas de antigos patriarcas, vindo ainda da época de transição Império-República... Ah! querido e velho Descalvado, Nossa Senhora do Belém do Descalvado! No entanto, agora à distância no tempo, vemos com os olhos da saudade, que aquele velho burgo já lá se foi, para nunca mais retornar até à consumação dos séculos; e que, em seu lugar como que edificaram uma outra cidade, com outra população, com feição urbana diferente, com outros usos... É como se os anos, em seu transcorrer veloz, houvesse soterrado aquela velha urbe, e, sobre as novas camadas, outra cidade houvesse brotado! Nada as identifica, nada mesmo, a não ser o velho nome comum de Nossa Senhora do Belém do Descalvado. Aquele nosso velho e querido Descalvado, porém, ainda insiste em exibir, em reclamar e afirmar a sua presença na nossa memória, e, também, nas dos seus velhos moradores, nossos contemporâneos. É uma luta inglória e desigual, bem o sabemos, sem qualquer perspectiva; a nossa velha cidade, com suas glórias, tradições, usanças e figuras, terá desaparecido de vez, e para sempre, quando, nós, também, com a nossa memória, tivermos nos encaminhado para o Grande Olvido... Aí então, velho e querido Descalvado de outrora, será como se nunca houvesse existido, e terás deixado menos marcada a sua presença do que a suave brisa que agora, lá fora, corre brincando entre a folhagem do roseiral. Permitam-nos porém, os leitores saudosistas, ou aqueles que se interessam pelo passado de nossa cidade, que exumemos as nossas lembranças, daquela cidadezinha pacata, nos períodos decorridos entre a  segunda e terceira década do século, principalmente daquela era trepidante que os americanos chamaram, com razão, “the roaring twenties”, dos primeiros automóveis, do nascimento do rádio e do avião, e do aparecimento daquelas danças escandalosas, condenadas unanimemente pelas mamãs assustadas, o “rag-time”, o “fox-trot”, o “charleston”...  A cidade de Descalvado era, na segunda e terceira década, a sede de um município essencialmente agrícola era o próprio país. Sua economia girava em torno da cultura cafeeira, e toda a zona rural era um imenso cafezal, a espraiar-se pelos morros e várzeas. Em época ainda recente, o município fora o maior, na cultura do café, em todo mundo! As propriedades rurais constituíam, imensos latifúndios, onde uma enorme população rural na sua maioria de recém-chegados, ruidosos e alegres imigrantes de origem itálica, ocupava-se unicamente do trato do café, planta exigente em cuidados, mas que, em compensação, dava bom dinheiro aos fazendeiros, dinheiro, esse que, por transferência, vinha a cair nas mãos dos colonos e depois nas dos comerciantes urbanos. Aos domingos, toda aquela enorme  massa de população rural, os colonos com suas numerosas familiagens, se abalava para a cidade, para as compras vindo por todos os meios de condução de trole, pelo trenzinho da Aurora, a cavalo, a pé...  Era o Dia do Senhor, o grande dia do comércio, das grandes vendas da liquidação dos estoques; ao comércio era permitido abrir as portas até às 15 horas, e já desde as primeiras horas da manhã as principais ruas comerciais regorgitavam de gente, num intenso movimento, numa agitação hoje inimaginável.   O pessoal das fazendas derramava-se, desde cedo, pelas ruas, enchendo-as e as suas lojas, vendas, empórios, açougues, padarias, falando alto, regateando, praguejando – não fosse o italiano o campeão mundial da “ bestemiação” – Discutindo preços, comprando coisas, fazendo barganhas de animais, arreios, selas, facas, garruchas pelegos... Havia no ar um clamor de mercado oriental; e por toda a parte uma agitação febril. Por volta das 13 horas, porém, fazia-se um hiato nessa enorme azafama; grande parte dos compradores buscava um lugar para o almoço, quer na Pensão Estrela, do José Borin, logo na subida da estação ferroviária, quer na pensão, do velho Bisão Zambelli, que em outros lugares mais modestos. O grosso, no entanto, calçava o estômago, iludia a fome crônica, nas numerosas vendas e padarias, a golpes de pão com mortadela, salame, sardinha de lata, de envolta com o vinho nacional da mais ínfima classe, ou com  refrigerante e cerveja de produção local, que era barata e de má qualidade, produzida lá pelos lados do Tamanduá.  Após o almoço, e enquanto giboiavam, preparando-se para a dura e longa viajem de volta, um ou outro peninsular, com alma de artista, ralado de saudade do velho torrão natal, sacava de sua corcentina, ou da sebenta sanfona de oito baixos, e exalava toda sua imensa tristeza em velhas músicas sem nome, aprendidas outrora na distante e querida pátria... Às três da tarde o comércio cerrava as suas portas, e o sinal para tanto era dado pelo apito do trenzinho da Aurora, que partia. Toda aquela enorme multidão tomava, então rumo de casa, pela mesma maneira por que viera, e um estranho e enorme silêncio descia das alturas, e se estendia de súbito sobre a cidade exausta, cansada da faina matinal. Era então, que a população urbana, em sua imensa maioria, ia cuidar de si para preparar o almoço ajantarado, cuidar dos seus afazeres domésticos, dar balanço nos negócios feitos, por em ordem as prateleiras destruídas, contar o lucro do dia... Como não houvesse qualquer indústria na cidade, a população toda estava de certa maneira ligada ao comércio urbano, vinculada às lojas, vendas, armazéns, padarias.   Por essa razão, o ajantarado saia lá pelas quatro horas, na mesma ocasião em que o homem do Correio, o velho Quim Carteiro, ou o Noscenzo, distribuía a correspondência e os jornais vindos da Capital. O jornal era o grande e único veículo de comunicações da época, e somente através dele é que a pequenina cidade, ilhada no seu mar de cafeeiros, tomava conhecimento do mundo exterior que se agitava lá fora da imensa epopéia de Verdum, dos festejos do Centenário e dos primeiros e audaciosos reides aéreos: o Edú Chaves fazendo Rio - São Paulo, depois indo até Buenos Ayres, sem falar na imensa glória nacional que foi a vinda do Jaú, da Itália até a Represa de Santo Amaro!... Não existia o rádio, e a palavra televisão ainda não fora sequer cunhada pelo mais avançado sonhador. E para ligar Descalvado às cidades vizinhas ao mundo exterior, somente havia a estrada de ferro, com os seus dois únicos horários diários: o das cinco e o das onze. As estradas de rodagem ainda estavam para ser abertas, no governo de Washington Luiz, que ainda estava por vir. Depois do ajantarado e dos jornais, caía a tarde, aquelas tardes de domingo, mansas e serenas, enormes e silenciosas tardes, em que o Sol, pelos lados de São Sebastião caprichava em exceder-se em beleza e grandiosidade, numa orgia de cores, numa aleluia de luzes. Vinha o crepúsculo, um crepúsculo maiúsculo majestoso sem igual no mundo todo, em que o Sol sanguíneo se afogava num mar de nuvens de ouro e rosa, que, depois, enlouqueciam e cambiavam para outras, outras, outras cores... Pairava no ar, por toda parte, um silencio pesado, palpável, audível...Após a noite vinha célebre e pontilhada de astros.          Como ponto final de um dia longo, como se fora a chave de ouro num soneto perfeito, restava para a mocidade o “footing” no Murinho, com rapazes e moças se cruzando naquelas intermináveis idas e vindas, manobras propiciatórias para aqueles namoros de olhar “tira linha”, ou “flertar”, como então se dizia. Alguns namorados com seus casos amorosos já em fase evolutiva mais adiantada, sentavam-se aos pares do Murinho, dizendo-se as mesmas eternas palavras e coisas que todos os jovens em toda as épocas, dizem, naquela idade de sonho...        De vez em quando a velha Corporação Musical Santa Cecília (a Furiosa, como a chamávamos) oferecia uma retrata no coreto, executando sempre os mesmos e velhos dobrados marciais, tão velhos e sabidos que até os cães o sabiam de cor... O coreto ficava ao lado direito da Igreja, quase fronteiro ao casarão dos Casati, uma edificação ao gosto da “arte nouveau”, como se usava. Mais tarde, a banda passou a tocar fora do coreto, já aqui em baixo, na escadaria fronteira à casa do Fabiano.     Após os passeios pelo Murinho, e quando a banda se recolhia, aqueles que estavam em condições econômicas mais favoráveis terminavam o dia assistindo a uma das sessões do Cine Central, estingüindo-se toda a vida social com o fim da segunda sessão. Descalvado, então, exausto, ia dormir...

Descalvado

( Enid Maria Besteti Pires para a Revista “O Mês” nº V – Julho 1989 - Enid natural de Descalvado, reside em Campinas. Pertence ao Centro de Poesia e Arte de Campinas (CPAC). É membro da Academia Campineira de Letras e Artes (ACLA). É membro correspondente de várias academias brasileiras e duas no exterior. Pertence a Internacional Writers na Artists Association (IWA) – Bluffton (USA). Tem livros publicados e participou de várias coletâneas poéticas, inclusive “International Poetry” (USA). É autora da letra e música dos hinos do CPAC e da E.E.P.G. “Arthur Segurado”. Detentora de vários prêmios de poesia).

Querendo, naturalmente, provocar minha irritação, (sou deveras bairrista) já há algum tempo, um conhecido me interrogou: ‑ Já viu a placa que se encontra nas portas de sua terra? ‑ Visite Descalvado antes que se acabe. Isto, porque o último censo havia demonstrado que não se verificara acréscimo populacional no município.

Senti uma tristeza, não propriamente pela pilhéria da frase, mas por sentir toda uma injustiça que o Governo faz com pequenas e velhas cidades paulistas, que outrora abasteceram seus cofres, através dos lucros auferidos de sua lavoura rica, ou de sua indústria atuante.

Sempre via Descalvado como a boa velhinha, que ia retirando do baú, aos poucos, seus tesouros, para alguns filhos pródigos, às vezes, adotivos, gastarem em outras plagas. É que o Município, em sua área rural, contava com grandes e belas fazendas, de onde produtos agrícolas eram vendidos em outras cidades, outros estados. Na maior parte das vezes a aplicação da renda era feita em setores menos trabalhosos e mais lucrativos, porém, fora de suas áreas.

Com uma regressão ao passado, lembro‑me das férias na fazenda Monte Alverne, dos passeios na Monte Olimpo, Ibicoara, Boa Vista, Barão e outras tantas, cujos nomes não me ocorrem no momento.

Que lazer sadio! Sem a poluição dos dias atuais, as águas dos córregos cristalinas, colocavam à mostra seu leito de areia branca e pura, sobre o qual peixes de tamanhos ínfimos se cruzavam em belíssima coreografia aquática, que deslumbrava nossos olhos de criança. O verde esmeraldino dos cafezais, dos algodoais, dos milharais, de toda a cultura mista, se estendia soberbo diante de nós. Os mais variados pássaros povoavam as matas e muitos deliciavam nossos ouvidos com seus trinados enternecedores. Tudo era natura, em sua essência!

Mesmo na cidade, grandes pomares com frutos abundantes e variados estavam sempre à disposição dos amigos. A hospitalidade era presença em todos os lares, pobres ou ricos, o que atraía número elevado de visitantes,

Como toda cidade interiorana Descalvado mostra no centro a admirável Igreja Matriz, onde a imagem venerada de sua padroeira, Nossa Senhora do Belém, ali chegou há mais de um século e meio, em carro de boi. Este centro urbano assemelha‑se a uma bacia, em cujas bordas situam‑se os bairros de Santa Cruz, São Sebastião, São Benedito e o Cemitério local.

Como eram concorridas e animadas as quermesses ao redor das capelas!

A Estação Ferroviária (antiga Companhia Paulista de Estradas de Ferro) tempos atrás era também local de lazer. Muitos jovens, moças e rapazes, propunham‑se a esperar o trem para colher alguma novidade ou saber de algum visitante que ali chegasse.

    As doze horas e cinco minutos, exatamente, sem atraso jamais visto, partia rumo a São Paulo uma composição que também transportava estudantes à cidade de Pirassununga, onde a escola normal (única na região) recebia alunos de várias localidades vizinhas. Como era confortável e divertido o trem da Paulista! Sempre asseado, sempre pontual, na chegada e na partida, sempre alegre e alvoroçado pelas vozes de gárrula juventude!  A par desta linha de bitola larga, havia uma composição que corria em bitola estreita, a qual denominavam trenzinho da Aurora, local este, de zona rural. Antes desta localidade o trenzinho vagarosamente, resfolegando na subida, passava pelo Pântano, onde eram freqüentes os passeios de descalvadenses e de visitantes em férias, Ali, a natureza se apresenta em toda sua exuberância. Uma queda d'áqua de setenta e dois metros de altura despenca‑se como leite espumante, entre verdes matas salpicadas pela policromia de flores nativas. É deveras um espetáculo deslumbrante! Não sei como, passados tantos anos, ninguém se tenha interessado para fazer do Pântano um local de turismo. Sei que o trenzinho para lá foi desativado, como também desativado foi o trem que rumava à Capital. Que pena! Espero que todos os descalvadenses conjuguem esforços no sentido de se reativar a velha e saudoso ferrovia.

Descalvado, atualmente, conta com indústrias de doces caseiros, muito procurados no mercado. Dedica‑se também à criação de aves galináceas donde lhe veio o título de "Capital do Frango". Houve melhorias no Município, mas é necessário, pelos seus méritos, que seja contemplada com mais atenção do governo do Estado.

A riqueza maior todavia, está no caráter de sua gente. Já, há algum tempo pude confirmar que isto ainda existe. Passando uns dias de férias, ali, com minha família, para recordar os velhos tempos, saímos à noite para dar umas voltas pela cidade à procura dos deliciosos doces, para as crianças.

Ao amanhacer do dia seguinte meu marido deu pela falta da carteira, que continha todo o dinheiro da viagem. Muito cedo, saiu à procura dela, pelas ruas onde passara. Perguntando a um gari, senhor de meia idade que varria cuidadosa e pacientemente as ruas da praça, se não havia achado uma carteira, ele retirou‑a do bolso e entregou-a intacta ao meu esposo. Quando este lhe deu uma gratificação, aceitou‑a relutante, achando que era grande a quantia. Assim Gente com “G” maiúsculo, ali, há muito e é por isso, que me orgulho de ser descalvadense.

 

A TERRA DE DESCALVADO (Padre Gustavo Mantovani para Descalvado em Revista de 08/09/75)

            Eu fui lembrado pelo Vigário de Descalvado, Monsenhor José Canônico, que me ofertou dois belos postais da Paróquia. Nesses dias, aqui onde resido e onde também sou Vigário, consegui colocar os dois significativos postais de minha terra numa moldura simples, mas bonita. Moldura dourada para circundar os quadros maviosos de minha querida cidade natal. E lá está o quadro, na sala de minha residência, onde constantemente não só eu mas meus amigos temos a lembrança da cidade da Mãe de Deus. Os postais trazem a imagem da Padroeira, a vista da cidade, o salto belíssimo do Pântano e também a fachada suntuosa da Escola Paroquial. Tudo aquilo me traz a lembrança feliz de uma meninice e juventude que passei tranqüilo na terra dos meus pais e na minha própria terra, onde nasci, cresci e de onde saí para cursar o Seminário em Campinas e São Paulo. Há uma frase bastante incisiva logo no alto do postal e diz: “Cidade de Descalvado, a terra abençoada de Nossa Senhora do Belém”. De fato. Descalvado é uma cidade abençoada. Dizendo isto, queremos significar não somente o seu chão fértil, mas o seu povo bom, trabalhador e cheio de fé. A terra de Descalvado é de um município grande, extenso, com grandes e numerosas fazendas, onde a colônia italiana cultivou o café com tanta arte, com grande amor e com intensa vontade de fazer o progresso de seu povo. Precisamente agora, quando se celebra o centenário da imigração italiana, temos os olhos voltados para um passado de luta e de glória, em que italianos simples mas devotados sulcarama terra do Descalvado para ali fazer frutecer o café e outras culturas que foram o esteio de nossa cidade e mesmo de nossa nação. A terra de Descalvado é realmente abençoada porque seu chão presta-se para tantas formas de cultura e de desenvolvimento. Ali muito se pode fazer porque a terra é boa e ainda estende-se por alqueires sem conta. Gostaria porém, de cifrar que a terra de Descalvado é sobremaneira abençoada porque o seu povo é uma gente que tem fé. E dizendo fé, queremos dar-lhe o sentido profundo e amplo que ele tem. Fé é cultura; fé é educação; fé é amor aos semelhantes; fé é desenvolvimento integrado; fé é abertura para o outro; fé é hospitalidade... Tudo isto nosso povo de Descalvado tem. Porque a Mãe de Jesus Cristo, sob a invocação de Nossa Senhora do Belém, foi conduzindo seu povo pelas sendas do Evangelho, pelos caminhos da fé, de tal sorte que a religião nunca foi percalço, mas sim integração, paz e felicidade. Quando, pois, a cidade comemora mais um aniversário de sua feliz existência, tive a idéia de deixar para os senhores este meu singelo hino de gratidão ao sincero e nobre povo de minha terra. 

 

HAJA PAZ DENTRO DOS TEUS MUROS

(Reverendo Mattathias Campos Fernandes escreveu na edição do Jornal “O Comércio” de 08/09/70 quando Descalvado comemorava seu 138O aniversário))

 

            No início de 1964, fincávamos pé em Descalvado. Iríamos prosseguir, nesta Terra inesquecível, no desempenho de dois apostolados que, há mais de duas décadas, caminham juntas em nossa vida, como missões paralelas: o ministério cristão como pastor evangélico e, no campo educativo, o magistério secundário.  A bem dizer, só conhecíamos uma família na cidade. Mas, mesmo estes caros amigos não eram filhos da Terra. Eram, como nós hoje o somos, “descalvadenses naturalizados”. Lembra-me, ainda, de quando (permita-me, leitor, reportar-me a uma experiência doméstica) minha esposa saiu pela primeira vez para fazer as habituais compras, em uma localidade que lhe era totalmente estranha. De volta à casa, vinha entre surpreendida e encantada... É que comerciantes, que jamais a tinham visto sugeriram-lhe, espontaneamente, um, que acertasse as contas no fim do mês; outro, que levasse a mercadoria e pagasse a prestações. Ao ouvir esta comunicação inesperada, tenho a impressão de que comentei, pilheriando: nesta cidade não deve haver pessoas desonestas e porisso é hábito confiar-se em todo o mundo, mesmo que se trate de um estranho... Tempos depois, ao passar diante da residencia de um vizinho e grande amigo, observei que, embora ele, e a família estivessem mui certamente fora da cidade, sua casa estava com os largos portões, destinados à passagem do carro, abertos de par em par, encontrando-se, ao fundo, uma bicicleta, colocada em local bem visível... Medo de ladrão era coisa que não passava pela mente do meu amigo...

            Esses fatos, que poderiam passar despercebidos (não para quem vive a lidar com problemas e temas sociais) parecem dar bem a medida de uma cidade. E esta cidade não é mais do que a grande família descalvadense. Uma família em que não contam apenas os laços de consanguinidade de parentesco, mas também os liames de vizinhança, de convívio, de amizade. Se somos uma família, é mister, naturalmente, que um confie no outro. E é mister que cada um se faça digno dessa confiança. Enquanto este pobre mundo prossegue em sua ebulição, enquanto a incompreensão, os choques, as crueldades inomináveis, a inversão dos valores morais marcam uma época, que a nossa cidade possa ser um oásis de paz, de amor, de compreensão. Que possa haver, como dizia o salmista inspirado na Bíblia “paz dentro dos nossos muros.” (Salmo 122:7).

            Descalvado não tem muros como as velhas cidades fortificadas. Na era atômica muro não é mais proteção. Descalvado não tem muros porque muro é barreira, é separação... Mas se muro é aconchego, é convívio amigo, é boa vizinhança, então repitamos: “Que haja paz dentro dos teus muros.” (Salmo 122:7). E David, o rei-poeta da Bíblia acrescenta, no mesmo salmo: “Orai pela paz de Jerusalém.”

E nós, parodiando-o, acrescescentamos: “Orai pela paz de Descalvado.”

            Violência, incompreensão, desonestidade, depravação, vícios... e que mais?... rondam o nosso mundo; Que em meio a toda essa efervescencia que nos assusta, a cidade, engalanada possa ser uma morada de paz, de segurança, de virtudes, e de prosperidade através do labutar honesto. Neste 138º aniversário de Descalvado, a Descalvado das escolas, a Descalvado – Capital do Frango de Corte, a Descalvado dos apetitosos doces caseiros, a Descalvado da indústria têxtil, nada melhor poderíaos fazer do que, genuflexos orar ao Deus eterno e onipotente pela paz espiritual e terrena da Comuna. Mas a Comuna faz anos quase com a Pátria. São duas festas entrelaçadas.

            Ó Deus! Toma esta Pátria estremecida em tuas mãos. E volve ao mesmo tempo, o teu olhar para a nossa cidade. Que lideres  e o povo, da Nação e da Comuna alcancem a tua graça!...

            Salve! Que comuna e Pátria, conjuntamente aniversariante, alcancem os mais altos níveis do progresso, da prosperidade, do bem estar social mas também as virtudes que fazem o cidadão íntegro e que constroem o tipo de caráter que Deus aprova.

 

JOÃO BAIANO (Gerson Álfio De Marco)

            A jornada descalvadense de João Fernandes da Silva, começou na Fazenda Monte Olimpo, no declinar do século XIX. Nesse tempo, deixou ele a natal Rio-de-Contas, na Bahia, aportando a estas nossas úberes plagas de milionária importância cafeeira. Chegava escoteiro e jovem, antecedendo a família. Com ele, era um sonho que vinha, um artista que surgia. Um artista do manual, um artista da pauta. Após curto intervalo rural, estabeleceu-se ele na sede urbana, onde suas mãos fizeram o difícil e o perfeito no metal e na madeira e onde sua sensibilidade artística revelou-se, exuberantemente. Casou-se com uma italiana, Adelina Mandelli, foi pai de numerosa prole que se assinalou pela operosidade e pela inteligência. Vital Fernandes da Silva um de seus filhos, como Nhô Totico, passou pela nossa radiotelefonia com um dos humoristas mais criativos e naturais. Sua irmã, Dona Claudina Cândida da Silva, esposada com João Iseppi, foi genitora, no lado da varonia, de Fernando Iseppi e do Dr. João Iseppi Filho, o primeiro, destacado Oficial de Justiça em nossa Comarca, e o segundo, eminente integrante de nosso Ministério Público, na Capital do Estado. João Fernandes da Silva, elegeu Descalvado para seu campo de trabalho e externação de sua inteligência e logo tornou-se o João Baiano de todos. Associando-se com Jorge Blackburn e o Dr. Anastácio Vianna, constituiu uma das mais conceituadas e vanguardeiras oficinas da cidade, com vasta clientela urbana e rural. Na sua tenda de trabalho, o hábil operário criou, também foi de sua inventiva uma máquina de beneficiar café e que, multiplicada industrialmente, integrou-se, logo como valioso elemento mecânico, na nossa então florescente cafeicultura. Que dizer-se mais, portanto, do operário? Exímio e incansável, inteligente e prático, escreveu o seu livro. Como músico é ele um capítulo especial, na nossa vida musical e de seu tempo. Afeito ao bocal e à palheta, às cordas e ao teclado, dominava, à perfeição, muitos instrumentos. Serenatista apaixonado, enchia as noites urbanas com os sons dos mais diversos instrumentos e até com os do aristocrático piano, este, acondicionado num veículo, João Baiano tocava e compunha. Como músico de filarmônica que foi e dos mais marcantes, viveu, também, como muitos, os anos duros e belos das bandas políticas, fenômeno existente em muitas cidades do Brasil, nos primeiros lustros do século, Descalvado inclusa. Entre nós, como alhures, o acirramento partidário saltava das lutas das urnas e dos livros de atas, das mofinas nos jornais e das retaliações pessoais, para o terreno melodioso da Música. Cada partido possuía a sua banda e cada um deles esmerava-se em fazê-la a melhor da cidade, aproveitando os músicos locais e contratando outros, extramuros. Em Descalvado, Luiz Altério e Pedro Buttera, dois ótimos maestros italianos, dirigiam as bandas rivais. Nessa partilha musical, João Baiano viu-se integrado a corporação musical dirigida por Buttera, grande trombonista, condutor de provada capacidade e que logo se tornou um incondicional admirador do magnífico intérprete que era o rio-de-contense. Eles eram os dois cumes daquela montanha artística, sem dúvida alguma. O maestro, com a sua larga experiência e excelência de execução. João Baiano, com o seu virtuosismo de tocar (e bem) todos os instrumentos da banda. Se Descalvado pode ouvir, um dia, numa corporação musical sua, os sons agudos duma requinta, deve-o ao gênio multiforme de nosso focado e que, nas retretas domingueiras, com habilidade incomum e sob a admiração de todos, tocava o seu difícil instrumento, num aplaudível  ineditismo instrumental, entre nós. Nas crônicas musicais descalvadenses, João Baiano foi  personagem única de saboroso episódio. Narremo-lo. Já dissemos da rivalidade bandística do tempo. Esta ia em seu clímax, então. Altério, para se avantajar a Buttera, na execução de peça inédita inaugurando-a na história musical de Descalvado, havia conseguido, em São Paulo, com as grandes dificuldades do tempo, a partitura dum vibrante dobrado, O Bandido. Com a sua melodia marcial e febricitadora, Altério e seus conduzidos pretendiam surpreender os contrários, na alegria duma tarde de domingo, numa vitória de sons e de primazia, mas os preparativos ocultos da grei daquele maestro foram descobertos por João Baiano que, incontinente, elaborou plano de nulificar a investida inimiga, antecipando-se à sua estratégia de vencer, pela surpresa. E, enquanto Altério ensaiava a música de sua pretensa vitória, o espião irá roubar o conteúdo sônico da partitura, com as mãos da audição. E, assim, postou-se, silentemente, às ocultas da gente de Altério, em local privilegiado: um canto de quintal, próximo da sala de ensaio daquele. E aí, nas trevas da noite, lápis e papel nas mãos, João Baiano foi registrando no pentagrama, as notas virginais do dobrado explosivo. Instrumentada a música, ensaiou-se a mesma, com extremos cuidados, nos arraiais de Buttera. Um parêntese, aqui: as retretas dominicais, naqueles tempos, eram efetuadas unicamente na atual Praça Barão do Rio Branco (Jardim Velho), no histórico coreto ali existente. Um domingo para cada corporação musical. Era a vez de Buttera e ele e seus dirigidos, para gáudio de seus mentores e partidários, encheram a amplidão do logradouro e suas cercanias com os sons desconhecidos do vibrante dobrado. Foi incontida a ira dos adversários! Descalvado ouvia O Bandido, pela primeira vez, mas pela banda de Buttera e João Baiano! E com uma semana de antecedência! Fora frustrada a prioridade da gente de Altério! Era esse um grande triunfo, em tempos em que, sob o paládio da política, lutavam-se guerras de arte, em batalhas sonoras! O fato mostra-nos, à saciedade, a esplendidez musical do filho de Rio-de-Contas. A sua fora uma tarefa só possível aos grandes conhecedores dos meandros da arte de Euterpe. Esse o homem que fizemos focalizar.

 

DONA SINHÁ  (contado por Sonia Belli)

            Dona Ana Rafaela Tobias de Oliveira Guimarães, filha do Coronel Rafael Tobias de Oliveira Sobrinho, sobrinha do Coronel Manoel Alves de Oliveira Leme e prima de Rafael de Oliveira Sobrinho. O seu primeiro casamento foi com Francisco de Paula Carvalho, justamente o maior propugnador para a construção do Hospital, da cidade, a mola mestra de um grande sonho, veio a falecer em pleno exercício do seu difícil cargo no ano de 1896. Deste casamento tiveram uma filha D. Lali, que foi professora. Viúva, casou-se em segundas núpcias com o Dr. Carlos Alves de Oliveira Guimarães, que foi Prefeito em 1918 e por diversas vezes ocupou o cargo de Presidente da Câmara Municipal de Descalvado, quando renunciou em 16 de abril de 1928, para ocupar o Primeiro Tabelionato da Comarca de Santo Anastácio (SP), cargo para o qual foi nomeado e o exerceu até seu falecimento em 1936. Deste casamento teve dois filhos: Silvio Alves de Oliveira Guimarães e Carlos Alves de Oliveira Guimarães. Dona Ana Rafaela Tobias de Oliveira Guimarães, faleceu em São Paulo no dia 26 de dezembro de 1926. “Dona Sinhá”, era o apelido carinhoso que lhe davam os descalvadenses. Era uma pessoa boníssima e inteligente. A sua vida toda foi devotada a caridade. Gostava, estimava e assistia as pessoas com muito carinho. Muito franca,m a doçura da sua amizade estancou muitas lágrimas daqueles que a procuravam.

 

JORGE BLACKBURN (Gerson Álfio De Marco)

            Sessão de 26 de setembro de 1882 da Câmara Municipal do Belém do Descalvado. Preside-a o então Major Rafael Tobias de Oliveira. Designa-se comissão para que “tratasse dos meios para os festejos de inauguração da Estrada de Ferro”. Era a Companhia Paulista de Vias Férreas e Fluviais que, a 7 de novembro do mesmo ano, deveria atingir, incontível em seu avanço pela hinterlândia paulista, o próspero município de tão renomado café. Organiza-se a comissão e dela participa, em meio à totalidade de nomes lusitanos, um saxônio Blackburn: Jorge Blackburn. Quem é? Que qualificações possuía para integrar tão assinalada comissão? A representação econômica e cultural do município? Há anos, velho descalvadense me havia dito tê-lo conhecido e dava-mo como norte-americano (um estadudinense) e proprietário de uma grande e moderníssima (para o tempo) oficina e onde se trabalhava o ferro e a madeira. Dela, saíam as máquinas e os veículos para nossa pujante agricultura do tempo. O opificium de Jorge Blackburn localizava-se (segundo o meu informante) na atual rua 15 de novembro, esquina da atual rua José Bonifácio; e era dotado de muita maquinaria, trabalhada por muitos artesãos, proprietário incluso. Disse-me, ainda, meu informante ser o nosso focado um excêntrico, eis que, não obstante possuir casa térrea, ao lado de sua oficina, construíra seu quarto de dormir, em um dos cantos internos do terreno, alteado e atingível por uma escada de madeira. Verídica a informação (e devia sê-lo, sendo muito probo o meu informante) não resta a menor dúvida ter sido o nosso retratado alguém que temia a ação noturna dos homens ou um saudoso do sobrado familiar da terra natal. Jorge Blackburn, com ou sem excentricidade; um precavido contra os ladrões da noite ou alguém a copiar, em terra estranha, uma pátria alcova assombrada, era o Vulcano municipal, fabricando máquinas para beneficiamento de café, arados, carroças, carroções e objetos outros servíveis aos labores agrários, sendo, portanto, uma capacidade utilíssima à nossa avançada cafeicultura. E, como tal, seguramente, entrou para a histórica comissão descalvadense de festejar a chegada dos binários da ferrovia, num evento altamente significativo para o município viver os anseios de maior progresso. É estranhável que uma comunidade composta, então, maciçamente de brasílico e portugueses, com uma incipiente colônia italiana, com alguns espanhóis e germânicos, a presença desse americano. Outro derrotado sulista na Guerra da Secessão? Cremos não ser esta uma hipótese ousada sabendo-se que a cidade de Americana, em nosso Estado, originou-se da arribada de alguns ex-confederados com a derrota. Eram os Jones, os Rehder, entre outros. Jorge Blackburn, americano como eles, poderia até ter vindo com eles e se separado posteriormente. Ou, então, talvez, tivesse ele vindo para a ubérrima terra, escoteiro, ótimo artesão que era e atraído pela nossa economia cafeeira, a reclamar, em sua contínua expansão, as máquinas, os veículos que saíam, perfeitos, de suas mãos hábeis. Continuamos a crer que a nossa hipótese é válida e, nela, insistimos. Seja como for, essa presença americana entre nós, naqueles tempos, constitui-se num mistério, se insistirmos nas razões de sua vinda para cá, não sendo elas as dum simples imigrado. E não sendo o artista americano um pregador, Jorge Blackburn tanto poderia ser um foragido da justiça (é um dos pólos de nossas suposições), como um valoroso combatente do exército de Lee, amargurado com a derrota das hostes do Sul ou um perseguido dos triunfadores (o outro polo). No meio, como uma possibilidade, um desenganado de amor. Somos levados a crê-lo um vencido do Sul. Um que, com toda certeza, teria pugnado, vitorioso, nas duas Bull Run; ou sofrido a derrota, em Gettysberg ou Chatanooga. E, ouvindo a sonoridade latina do idioma luso e sentindo toda a beleza da cidade provinciana, quantas vezes, certamente, não teria ele assobiado ou cantado as contagiantes melodias de Foster, as dulcíssimas My Old Kentuty e Swanee River ou as nostálgicas Old Black Joe e Unkie Ned? Saudoso de seus pagos: uma plácida cidade beiradeando o romântico Mississipi ou ensombrada pelas Montanhas Rochosas? Deixando de parte estas divagações, uma coisa ressalta: Jorge Blackburn era, na Descalvado fin-siécie, uma pessoa de prol e isto, naturalmente, pela sua competência, pelo seu status de industrial, pela sua inteligência. Daí o seu nome saxônio entre tantos nomes lusos, de agaloados da Guarda-nacional, de afazendados do café. Jorge Blackburn, um nosso Jones? Um nosso Rehder? Talvez.

 

FELICIANO DE SALLES CUNHA (conto de Luiz Carlindo Arruda Kastein baseado em artigo de Mário Joaquim Filla e Paulo Belli)

            Muitos descalvadenses que possuem ranchos de lazer na Vila de Jupiá, às margens do Rio Paraná, divisa dos estados de São Paulo e Mato Grosso, conhecem muito bem a Rodovia Feliciano de Salles Cunha, que tem início em Mirassol, e termina em Ilha Solteira. Aliás esta rodovia é a SP 310, que de Limeira  a Mirassol recebe o nome de Washington Luiz, e depois tem a denominação alterada para Feliciano de Salles Cunha, num percurso de quase 300 km. Mas quem foi Feliciano de Salles Cunha?        Os jornalistas Mário Joaquim Filla e Paulo Belli, nos contam na “Descalvado em Revista” de 1979 que os descalvadenses mais antigos com toda certeza já tinham ouvido falar na “Alfândega Descalvadense”, estabelecimento, que no início do século ficava junto a Estação da Estrada de Ferro Paulista, com a finalidade de comércio e exportação de café, e que era de propriedade do então jovem Feliciano de Salles Cunha. Nesta época, Descalvado era uma das maiores fontes  do Estado, produzindo riquezas com a exportação do café. Com terras excelentes, obtidas imediatamente à derrubada das matas, que chegavam a adentrar a cidade, Descalvado era rodeado das melhores fazendas de café, que na época, representavam o que são, economicamente, as indústrias para o país, movimentando gente e dinheiro. O livro “Sertão Encantado” de autoria de José de Salles Cunha Júnior conta um episódio interessante e cômico da passagem de Feliciano de Salles Cunha por Descalvado. Trata-se do capítulo “O Casamento”, que narra o drama de Therezinha que abandonou o noivo no altar, por amor a Feliciano. Vejam a narrativa do próprio autor: “Therezinha saiu de casa vestida de noiva, ladeada pelos seus familiares e seguiu de carruagem em direção à Igreja, já cheia do que de melhor existia na sociedade local e a de São Paulo. As famílias da noiva e do noivo haviam contratado uma orquestra de São Paulo para abrigar a cerimônia.  A marcha nupcial ecoou pela Igreja com a noiva seguindo para o altar em direção ao seu futuro marido, que mal ela conhecia, para fazer a vontade dos pais. Era bonita em qualquer momento, mas estava pálida e não parecia irradiar alegria. O sacerdote inicia o cerimonial. A orquestra pára, há um silêncio solene na Igreja, quebrado aqui e ali por uma tosse ou murmúrio. A orquestra com seus dois violinos reinicia uma música muito linda, mas que era muito familiar para a noiva. Era “Je T’aime” (Eu te amo) muito em voga na época. Agora “Je T’aime” chega aos seus trechos mais lindos. As lágrimas assomam os lindos olhos da noiva. Rolam agora pelas faces. O padre faz a celebre pergunta: “É de sua vontade ter o senhor” e diz o nome do noivo - “como seu futuro esposo?” A moça está agora em soluços. As lágrimas e os soluços embargam sua voz. Enfim explode: “Não, não é ele que quero. É de Feliciano que eu gosto”. E continuando “Não posso”. E agora dirigindo-se ao noivo: “Desculpe, mil desculpas por isto, mas mal nós nos conhecemos”. Retira-se do altar deixando o noivo, parentes e toda aquela assistência boquiaberta, por tão inesperado desfecho. A orquestra já havia parado a música. Agora houve-se o burburinho da assistência. Segue-se a correria do pessoal com a saída da noiva. A cerimônia é encerrada sem casamento. À tardezinha Feliciano sai do Salto do Pântano, em direção a Descalvado. Logo ao chegar à cidade, percebeu que algo de anormal havia acontecido, pela aglomeração de pessoas nas ruas. Os seus mais conhecidos acenaram-lhe as mãos, insistindo para que parasse o cavalo. Toma aí a informação, o casamento não se realizara. A noiva abandonara o altar. E dissera que era dele que ela gostava.  Feliciano ficou firme em sua casa. Nem aquela noite sairia. Mas na manhã seguinte, iria para a alfândega de café, seu ramo de negócios. Logo depois de sua chegada, os familiares da moça o procuraram. E contaram logo, Therezinha chorou a noite toda. Está irredutívil e diz que é de Feliciano que ela gosta. O senhor ainda deseja ter Therezinha como companheira? Feliciano pede calma. Deplora o que aconteceu e explica. Therezinha é a minha paixão. Se ela e os familiares desejam esse casamento, eu mais do que nunca respeito o que disse em casa de vocês. Amo Therezinha e mais do que nunca desejo-a como companheira.” O livro nos relata que depois do acontecimento (um grande abalo na sociedade descalvadense da época), a família de Therezinha concordou com a sua preferência e Feliciano casou-se também, com quem amava sinceramente, e prossegue a narrativa: “A vida sorria para Feliciano. O par de pombinhos (Feliciano e Therezinha) vivia como no céu. Ele entusiasmado, aumenta os seus negócios, que também lhe sorriem. Na política local, foi eleito Vereador com o maior número de votos. E falavam que ele seria o futuro Prefeito.” (Neste ponto o livro fantasia, uma vez que os arquivos da Câmara revelam que o Capitão Feliciano de Salles Cunha ficou como Suplente de Vereador na 12ª Legislatura, de 07.01.1905 a 06.01.1908, tomando posse quando do afastamento do Vereador titular Capitão José Quirino Ribeiro. Outro engano também: Feliciano entrou na política descalvadense depois da morte de Therezinha que ocorreu no ano de 1904). “Os nove primeiros meses correram maravilhosos para o casal que recebeu a estima de Descalvado. Agora Therezinha estava grávida e esperava o seu primeiro filho. Mas uma tragédia: a moça não é feliz no parto e para a angústia e desespero de Feliciano, perde, de uma só vez, a esposa e o filho. (Pesquisas realizadas no Cemitério Municipal de Descalvado por Sonia Belli, confirmaram que Thereza Cândida Leite Salles, filha de Joaquim Cândido Filho e casada com Feliciano de Salles Cunha, faleceu  com 23 anos de idade de embolia post partem em 16 de março de 1904 e encontra-se sepultada na quadra G47. Na quadra I6 foi localizado Joaquim, filho de Feliciano de Salles Cunha e Thereza Cândida Leite Salles, falecido com 2 meses em 1º de março de 1904, vítima de convulsão). O fato consternou toda a cidade. Feliciano perde o sentido dos negócios que iam tão bem. Chegou à conclusão de que não poderia ficar e viver mais em Descalvado com a lembrança de Therezinha em todos os lugares. Passa o seu rentável negócio para a frente e desaparece de Descalvado.” Assim devido a este infortúnio, Descalvado perdeu um grande realizador. O livro nos conta que Feliciano de Salles Cunha, foi para São Paulo, depois para São Carlos. Depois de mais de 12 anos, chega a Mirassol, à boca do sertão. Era 1917 e nos diz o livro: “Quis, assim, a fatalidade que os sertões de Rio Preto viessem a ganhar um homem de visão.” Abriu estradas por sua conta, inaugurou o primeiro cinema, foi o idealizador e o realizador de tudo o que necessitava a região. E esparramou o progresso por todo o sertão. Outra de suas realizações foi a instalação da primeira linha de jardineiras (ônibus da época) de Tanabi. Lamentável, portanto, a sua partida de Descalvado. Com o seu espírito empreendedor, quanto não poderia ter feito para o progresso de nossa cidade! (Pesquisa realizada por Sonia Belli, constatou que Feliciano de Salles Cunha casou-se mais duas vezes, estando sepultado em São Paulo com sua terceira mulher).

 

DR. FRANCISCO EZEQUIEL DE MEIRA JÚNIOR (Gerson Álfio De Marco)

            Até o ano de 1867,  houve em Descalvado uma via pública ( a atual rua José Rodrigues Penteado), denominada rua do Dr. Meira. Era uma denominação popular, porquanto Descalvado não possuía ainda seu Legislativo, legítimo fixador da nomenclatura dos logradouros urbanos; e o povo, às vezes com muito espírito, e sempre com muita justiça, supria a falta de batizadores legais, nesse setor. Quem era esse Dr. Meira? Parece-nos que foi o primeiro médico que pisou as terras de Descalvado, Antes dele e com ele ainda, trabalharam e trabalhariam  na seara de Eulápio, os boticários e os curandeiros. É de supor que o Dr. Meira tenha aportado em nossa terra num dos afamados anos que precederam a sua emancipação política e quando a proliferação dos cafezais e as aberturas de novas fazendas, davam um colorido especial as terras de Descalvado. Não sabemos se o Dr. Meira retirou-se da cidade, ou foi sepultado no cemitério velho.

 

DR. AMÂNCIO PENTEADO FILHO (Gerson Álfio De Marco)

            Notável causídico, filho do Dr. Amâncio Guilhermino de Oliveira Penteado, nasceu em Descalvado, onde fez seus primeiros estudos, ingressando mais tarde na tradicional Faculdade de Direito de São Paulo, onde se formou com brilho. Formado e depois de curto advogar em nossa terra, foi ele designado, tal sua competência, para Juiz de Direito no Território do Acre. Retornou depois a nossa terra, onde advogou por muitos anos. Indo para São Paulo, em 1932, trabalhou no Departamento da Receita, como consultor jurídico. Faleceu na Capital. O Dr. Amâncio Penteado Filho, mais conhecido como Dr. Amancinho, era um cultor emérito da ciência do Direito. Seus escritos de caráter jurídico e integrados autos das mais diversas e difíceis causas, nos mais variados processos, atestam seu imenso saber, na ciência de Ulpiano e Papiniano, e como sabia manejar com mão de estilista e de profundo conhecedor, o nosso sonoro idioma. Foi ele um espírito brilhante e um profissional de alto gabarito. Honrou sua terra natal e a tradição de inteligência de sua ilustre família.

 

DR. GUMERCINDO PENTEADO (Gerson Álfio De Marco)

            Grande engenheiro, nosso ilustre conterrâneo a quem, o Governador paulista Dr. Lucas Nogueira Garcez, glorificou, dando seu nome à monumental ponte, que lançada sobre o Rio Grande, liga São Paulo a Minas Gerais. Entre as grandes iniciativas do grande engenheiro descalvadense, poderemos anotar as seguintes: pioneiro da fundação do Fundo Rodoviário e, pelo qual, cada município, recebe, trimestralmente, go governo da União, cotas para a conservação e a melhoria de suas estradas; obtenção durante o governo do General Eurico Gaspar Dutra, da criação de um Posto Agro-pecuário, em Descalvado, do governo federal; obtenção durante o mesmo governo, da Diretoria Geral do Departamento Nacional de Estradas de Rodagem das providências para o pronto início do trecho rodoviário Descalvado-Araraquara e pelo qual Descalvado se ligaria, por ótimo e reduzido trecho de estrada, com o triângulo mineiro, com a zona araraquarense, com o sul de Goiás, com o norte de Mato Grosso, de um lado; e com o sul de Minas, a Capital Federal, Casa Branca, etc, de outro. Outro trabalho do Dr. Gumercindo Penteado foi a consecução, quando estudante, ainda, da abertura do trecho Porto Ferreira -Descalvado - São Carlos, de grande significado para a época, tirando Descalvado de um perigoso isolamento. O Dr. Gumercindo Penteado e outros descalvadenses e pessoas dos municípios citados, conseguiram esse grande benefício, do Governador do Estado de São Paulo, Washington Luiz, logo após o término do trecho São Paulo - Ribeirão Preto. A Ponte sobre o Rio Grande foi desativada na noite de 3 de maio de 2.001, justamente após a passagem sobre ela de um caravana de descalvadenses com destino a Pousada do Rio Quente. A nova ponte inaugurada em 4 de maio com a presença dos governadores dos dois estados, ministros e do Presidente da República, recebeu o nome de Governador Franco Montoro.

 

ANO 2.000 – DIÁRIO DE UMA GAROTA

(Ana Maria Macedo escreveu no Jornal “O Comércio” em 08/09/1966)

 

Descalvado, 6 de setembro do ano 2.000

            Hoje, pela manhã, eu ainda estava em São Paulo e agora... agora eu consegui realizar o maior sonho de minha vida: conhecer minha terra natal. Sim, meu querido diário, tenho a imensa satisfação de ser descalvadense. Nasci aqui em 1985 mas infelizmente, logo fomos para São Paulo e nunca  mais aqui voltei. Só hoje começo a conhecer realmente minha “terrinha”, E digo-lhe sinceramente, estou encantada com seu aspecto e com a amabilidade de meus conterrâneos.

            Mas deixa-me contar todos os acontecimentos de hoje: Quando o avião sobrevoou a cidade tive, uma grande emoção e... senti o “ar” diferente! Será impressão? Ou exagero? Parecia-me ser mais leve, mais perfumado... Já em terra meus olhos curiosos não queriam perder um único detalhe e corriam trêfegos, analisando tudo, com rapidez incalculável.

            O aeroporto, construído recentemente, possui arrojadas linhas arquitetônicas e aparelhamentos dos mais modernos. Situa-se pouco distante da cidade, num bairro populoso, cujas casas pré fabricadas habitadas por laboriosos operários, dão um toque especial à paisagem, já por si tão interessante. Com os demais passageiros, que por sinal eram muitos, dirigimo-nos para a cidade de ônibus e nos acomodamos no Rex Hotel, cujo proprietário nos dispensou especial tratamento, demonstrando grande júbilo ao rever meu pai, após tão longos anos. Depois de percorrer as dependências do hotel, que foi remodelado conservando as características antigas, recordei-me de que vovô já havia me falado ser antigamente neste local o fórum e a cadeia pública. Achei interessante a semelhança das “funções”. Mais tarde fui com mamãe visitar uma sua amiga “dos velhos tempos” e esta senhora, ao notar meu entusiasmo pela cidade amavelmente nos levou para dar um passeio. Como eu nunca havia visitado uma cidade interiorana, fazia uma idéia tão diferente!... O trânsito intenso no centro da cidade já foi uma surpresa e os bairros modernos que percorremos, me encantaram. Como é uma cidade antiga, em sua periferia é que notamos construções mais atualizadas e residências mais modernas e funcionais.

            O prédio da Faculdade de Filosofia, no Jardim Belém, foi construído há uns dez anos mais ainda é interessante. Verei seu interior quando for visitar a 38ª Feir de Ciências que lá se realiza todos os anos e que já é famosa em todo o Estado.

            À noite, travei conhecimento com alguns rapazes e moças e, com eles, fui ao cinema ao ar livre e depois fomos cear no Clube de Campo. Que recanto maravilhoso! E que companhia agradável a desses jovens desinibidos que agem com tanta naturalidade na tarefa de me distraírem. Distante da cidade, pudemos observar, devido aos festejos, sua iluminação feérica e eu pude me encantar com o cintilar das estrelas, a transparência do céu e o luar... ah! O luar! Nunca havia visto coisa igual!

Descalvado, 7 de setembro do ano 2.000

            O tradicional desfile escolar, pela manhã, pouco diferiu dos que eu já havia visto. Apenas alguns carros alegóricos conseguiram despertar minha atenção pela sua originalidade, pois quanto ao resto, aluno é sempre aluno e escola é sempre escola...

            Mas... a Feira de Ciências embasbacou-me!!! Logo à entrada, nos jardins da Faculdade está armazenado o Pavilhão do 35º Salão da Criança e lá a gurizada se delícia com os brinquedos, o museu de cera com vultos históricos, cineminhas, teatro de bonecos, etc. Achei interessante que os bonecos são dirigidos por controle remoto, pelas próprias crianças, havendo também uma miniatura do foguete espacial funcionando pelo mesmo sistema. Não posso deixar de felicitar os empreendedores pioneiros que tiveram a brilhante idéia de organizar a Primeira Feira de Ciências. Imagino quantas dificuldades não tiveram de superar, até verem suas aspirações concretizadas! Mas valeu o sacrifício, pois é digno de nota o entusiasmo e o orgulho que vibram nos corações dos estudantes que participam da exposição. Na sala de Astronáutica tive a oportunidade de ver uma cópia da última cápsula espacial que atingiu a Lua, levando alguns passageiros. Atualmente as viagens à Lua são freqüentes e as astronaves proporcionam conforto e segurança, mas... não me atraem...

            Esta Feira de Ciências nos dá ainda oportunidade de realizar um verdadeiro “chek-up” grátis. Podemos fazer abreugrafias, eletro-cardiogramas, radiografias, diagnóstico precoce de câncer, assim como vacinas contra uma infinidade de moléstias. Não perdi tempo nesta parte, pois já havia feito todos os exames obrigatoriamente por ocasião da matrícula no Colégio.

            Diverti-me imensamente vendo minhas novas amigas pelo circuito interno de TV, cujas telas coloridas espalhavam-se por toda parte, mas foi na sala de antiguidades que encontrei coisas que realmente me interessaram. Fotografias, revistas e velhos jornais forneceram-me aspectos antigos da cidade, aos quais meu avô sempre se refere. Mas como está tudo tão diferente... Achei formidável ler nos jornais as notícias do casamento de meus avós, do nascimento de meu pai e do meu próprio!

            Objetos tais como televisores, rádios, eletrolas, etc, de quarenta anos atrás, fizeram-me constatar o progresso da técnica neste setor. Estou pensando até agora como é que os jovens daquela época carregavam aquelas vitrolas imensas e todos aqueles discos em suas festinhas e passeios! São tão práticos nossos aparelhos musicais que cabem dentro da bolsa, com inúmeros rolos de fitas gravados do tamanho de minúsculos carretéis de linha!

            E as televisões! Além de “gigantescas”, comportavam um número restrito de estações transmissoras e a imagem não era colorida. Inacreditável! Mas o que me fez rir escandalosamente foram as roupas! Como a moda é volúvel e disparatada! Gostaria de saber a utilidade daquilo que os homens usavam ao redor do pescoço, e que se chamava gravata! Foi relutante que deixei aquela sala tão divertida, mesmo assim, somente devido a insistência de meus acompanhantes e a fome que se aproximava.

            Jantamos no recinto da Feira, num restaurante tradicional, montando de maneira a proporcionar um tratamento “à moda antiga”. Como curiosidade, achei muito interessante, ms não creio ser nada prático, lavar tantas louças e talheres. E que cardápio complicado!... Se eu tivesse que viver naquela época não sei o que seria do meu comodismo!

            À noite fui ao baile num clube muito elegante, amplo e confortável. Dancei muito e fiz novas amizades com pessoas extremamente agradáveis.

            Querido amigo diário, parece-me ter sempre vivido aqui neste ambiente tão amigo e acolhedor...

São Paulo, 8 de setembro do ano 2.000

            Logo que me levantei fui à Igreja para fazer minhas preces e conhecer pessoalmente Nossa Senhora do Belém. Digo assim porque vovó já havia me falado tanto Dela enquanto meu avô ilustrava a conversa com fotografias e filmes, que sempre tive a impressão de já conhecê-La. Francamente, nem os exageros de meus avós fazem jus a tanta doçura e singeleza que emanam daquela figura esplendida e que ao passar do tempo e as necessárias restaurações não conseguirão jamais apagar. É verdadeiramente magnífico este Templo que se ergue majestoso em pleno centro da cidade, numa pracinha discreta, ladeado por prédios de arquitetura tão diversa da sua.

            Quando à tardinha, o avião decolou senti uma melancolia inexprimível que me fez calar, mas uma vez dentro de mim murmurava docemente: Eu voltarei... Eu voltarei...

 

GLENAN (Wanderley Prevatto conta Dr. Glenan Leite Dias em 1977)

            Nem por ter nascido em Machado possui tendências destruidoras. Quando lhe pisam no calo briga como um satanás sem ser ofensivo. Às vezes, irrita-se por dá cá aquele cigarro. Embora não perca a linha. O charme de mineiro que carrega no lombo dissipa caturrices. Desde fins do século XIX até o dia de hoje. Aos oitenta e três anos, Glenan Dias é uma criatura que sabe-se impor diplomaticamente. Deixou para trás aquele autoritarismo oriundo dos frutos da sua profissão. Ser médico em terra de ranzinas vai bem para nervos de aço. Não para corações. Não para consciências. Ele está de acordo com o que fez. Sentindo sempre que falta algo que leve o seu carimbo. O timbre do talão de notas medicinais? Cremos que seja o da bondade com que “sente” as coisas ao seu redor. Compreensivo, fica “fulo” quando não o entendem. Com receio de levá-lo a sério, tentam esquecer de um dr. Glenan com muito para contar. E também para espinafrar acontecidos, coisas e criaturas. Nunca ele esteve tão vivo. Um menino quase centenário. Que não se perdeu nos seus caminhos como um labirinto. Saibam os justiceiros encontrar nele uma época de fartura. À semelhança do tempo da vaca gorda, onde a laranja custava dez tostões duas dúzias. A boa feijoada de um tempo que não deixava esfriar o caldeirão. Aqui vai a gororoba: Noticiava num distante 1922 o jornal do dr. Urbano a chegada a este reino de um jovem médico. Origem: Rio, capital da República. Com dois passos, subira a São Paulo e daí a Descalvado fora um pulo. Por enquanto, vinha com boas referências. Não estava expulso da cidade maravilhosa por incompatibilidade de gênio. O prefeito Pereira Passos e o sr. Epitáceo Pessoa também apreciavam polêmicas. Que Glenan fosse em paz e encontrasse no interior paulista o de sentar praça. Constatou o real: na placa da estação da Companhia Paulista cantava um nome. Parecia de sabença gramatical: adjetivo. Descalvado para todos os efeitos. Enfim, o trem não ia para a frente. Ponto. Na terra pouco prometida. O que fez Santos Dumont com o aeroplano garatujou Glenan com o bisturi. De nó nas tripas a inchaço no pé, não teve mãos a medir para nascer humanos, desumanos e infetados. Curou canônicos, coronéis e ferroviários. Fora os duvidosos de carteira do trabalho. De estetoscópio no peito e umas rezas bravas na cabeça. E as agüinhas porretais e o de restoremediavelmente preparado dentro do Ford de bigodes 1928. Lá ia Glenan fonfonando gravidades receituárias e espantando a macacada. Tudo feito em ritmo de dois palmos de olho para fora e três metros de apressada impaciência. Quarenta e tantos anos de assinaturas e consultas nos papéis que derrubam qualquer Esculápio. Os gatafunhos da sua letra cheiravam de longe interesses farmacêuticos. Até a cobra que simboliza remédios dançou ritmadamente sob a banda medicinal de Glenan. Das prateleiras nem um melhoral sobrou para contar a estória. Achou melhor voltar as atenções à agricultura. O gado pecuariamente instalado recebeu, como nunca se vira, injeções de tamanhos os mais incríveis. Bumbuns doloridos. Vitalidade. Do leite puro da vida viveu o nosso herói. (Não se esqueçam de que como homem de arado e carpideira recebeu ele as justas homenagens. Porque, ao médico Glenan, somente Deus poderá fazer justiça. É algo muito complicado explicar aqui este problema.) Pagou-lhe a Vigor o suor do rosto das novilhas. E dos bois também. Afinal, de médico a veterinário e pecuarista a concepção foi sempre a mesma: os aparelhos é que mudam. Glenan, este não. Modernizou-se com as invenções e assume conforme as épocas. Tanto no consultório quanto nas pastagens dos seus afazendados. Engraçado, jovem. Dizem os mais velhos que juízo não lhe falta. Tem demais este negócio que se convencionou denominar personalidade. Jamais esperou recompensa às realizações espalhadas por aí com sofrimento. Blasfêmia não pertence ao seu vocabulário. Tem lucidez à altura para reconhecer as limitações que o fazem personagem do século XX. Além de ter preparado planos objetivos para um futuro não muito distante. Dr. Glenan pertence ao grupo dos que ficam para a semente. Enganando os tempos. Como um adolescente de oitenta e quatro anos.

 

BENO RIECKMANN ( Josef Ronald Rieckmann)

 

                A década de 30 foi uma das mais conturbadas da história brasileira. A falência do café como uma economia monoexportadora em 1929 e os novos rumos políticos do país a partir da revolução de 1930, impuseram uma alteração da economia e da sociedade, dessa vez mais voltada ao mercado interno. Esses novos rumos proporcionou o aparecimento de indústrias e da policultura que transformaram o país, e  principalmente, a geografia econômica do Estado de São Paulo, oferecendo novas perspectivas de negócios e oportunidades, sem contudo desconsiderar as terríveis realidades sociais. Descalvado, município da bacia do rio Mogi‑Guaçú, incorporou toda a fase cafeeira e sua herança histórica até 1930 como um dos primeiros produtores nacionais (haja vista os nomes de suas principais ruas que homenageiam os coroneis do café), que passou por transformações imperativas em sua vida cotidiana na época. No lugar de somente o café, surge a policultura e a indústria. As discussões da Câmara no período podem ser observadas nos relatórios semanais do jornal local " O Commércio " que recaiam mais sobre discussões e providências urgentes que se faziam necessárias nessa mudança, tais como: - a necessidade de novo aparelhamento urbano, com mais casas para a população operária que se avolumava, visto a instalação de cotonifícios e a disponibilidade de mercado para as tecelagem já existentes; - incubação de dispositivos para a saúde, visto que, segundo o jornal " O Commércio ", Descalvado era uma fonte de insetos e animais nocivos (pulgas, percevejos e ratos); - mediar as disputas pelas necessidades de infra‑estrutura municipal, entre fazendeiros e industriais, no que se referia à pavimentação urbana, às estradas municipais, à coleta de lixo e às novas casas; e  organização de um sistema tributário, de modo que houvesse maior cooperação popular, dos fazendeiros e dos industriais. Pelo que se pode observar nos relatórios publicados pelo jornal " O Commércio", a Prefeitura e Camara de Vereadores era dominada pelo fazendeiros o que gerava alguma insatisfação por parte dos industriais locais. Talvez, por isso, os nomes de consenso para presidirem a Camara de Vereadores naquela época foram os de Plínio de Castro Prado e Benno Rieckmann. O primeiro, ligado a família tradicional paulista e de grande influência política na Capital, além de ser agricultor no município, e o segundo somava no periodo atividades agrícolas e industriais. A infra‑estrutura necessária para a transição econômica do município foi difícil de ser conseguida, faltavam recursos. A nova lei do “Estado Novo" era excessivamente centralizadora com relação aos impostos e ao enfraquecimento dos estados, bem como da própria Federação. Parecia ser uma meta da ditadura imposta no período. A fim de melhorar aparentemente a situação, a colaboração de alguns fazendeiros se fazia presente pelo menos na manutenção das instituições como: escolas, asilos e Santa Casa.

BREVE HISTÓRICO DO PERSONAGEM

BENNO RIECKMANN

Naturalidade: Brasileiro (1898 em Campinas, SP / 1947 em Americana, SP)

Formado: Técnico Agrícola na Escola Técnica de Manhein ‑ Alemanha

Profissão: Agricultor e Industrial em Descalvado, SP

Carreira política: Eleito Suplente de Vereador na 21ª Legislatura (19/06/1936 a 10.11.1937) assumiu a vereança na vaga deixada por Eduardo Whitaker Penteado. Eleito Presidente da Câmara Municipal em 1.937 seu mandato foi extinto com a declaração do Estado Novo por Vargas. Benno Rieckmann retornando da Alemanha no final da 1ª Guerra Mundial, recebe apoio da empresa Rieckmann & Cia., situada em São Paulo, para diversificar os negócios da família por meio da cafeicultura. A Região escolhida foi o Vale do Rio do Pântano, no município de Belém do Descalvado. Região de boas aguadas, reversos de cuestas com terra roxa (café) e depressões alongadas que poderiam servir para a pecuária além de contar com a infra‑estrutura nos transportes da Cia. Paulista de estradas de Ferro, além de bons armazéns para o café pronto. Em 1921, após o casamento com a Sra. Gerda Frankem, eles assumem a fazenda Morro Alto do Cel. Antonio Alves Aranha, que era possuidora de bons pés de café e de um bom número de colonos. Já em 1924, com a Revolução em São Paulo, os problemas do custeio aparecem com o bombardeamento e cerco da Capital pelos revolucionários, e os depósitos da empresa Rieckmann & Cia. são assaltados e incendiados. As dificuldades foram contornadas pela renda das safras de 1926 e 1928, as melhores do município e de toda a região, porém, com a derrocada cafeeira da crise mundial de 1929 impôs novos treumas e sacrifícios à família. A diversificação das atividades econômicas tornaram imperativas, mas a falta de crédito foi cada vez mais limitada ao Estado de São Paulo, devido à política revolucionária de Getúlio Vargas. Sem perspectivas para o café e à sua diversificação econômica, a elite paulista conclama a população para lutar contra o Governo Federal. Nova Revolução, agora a Constitucionalista de 1932. Cinco descalvadenses comparecem nas frentes de combate, entre eles, Benno Rieckmann, que assumiu o cargo de 2° Tenente na Cavalaria do Rio Pardo, com sede em Ribeirão Preto, SP a convite da família Castro Prado (referido Batalhão foi criado pelo Sr. Cid de Castro Prado, irmão do fazendeiro Plínio de Castro Prado, da Fazenda Pedra Branca, em Descalvado). A família Castro Prado quando sediada em Descalvado foi uma das responsáveis pela inauguração da Santa Casa, do Lar Escola Imaculada Conceição e outras obras beneméritas. Depois de um mês e meio de combates no Vale do Paraíba e na região de Capão Bonito, a guarnição da Cavalaria do Rio Pardo definitivamente se rendeu aos gaúchos. Sem suprimentos e munição, não compensava mais a luta na frente sul. O transporte dos prisioneiros foi coisa inusitada: vagões de gado, onde somente uma lata servia de banheiro. No trajeto, vieram Curitiba, Morretes e Paranaguá, para o embarque definitivo dos prisioneiros paulistas num cargueiro até a Ilha Grande, litoral do Rio de Janeiro. Lá, Benno Rieckmann encontrou Origenes Lessa, Austragésilo de Ataíde e outros paulistas que se encontravam presos na Ilha desde o começo do conflito. Lessa cita Benno pelo menos três vezes em sua obra “IIha Grande”.Quando foram libertos, o regresso foi confuso até São Paulo, pois no Rio de Janeiro, nada facilitavam aos paulistas, nem a venda de bilhetes de trem, nem comida, nem informações. Sem dinheiro, ficavam amontoados nas estações ferroviárias. Retornando para Descalvado, chegou com uma barba enorme que relutava em tira‑la. O jogo de pólo ganhava adeptos e os campos se multiplicavam na Fazenda Lagoa Alta, no bairro de São Benedito, ao sul da cidade e outros menores. O entusiasmo era grande, nascia a Sociedade Hípica de Descalvado e no campeonato brasileiro de 1933, como triangular entre SHD (Descalvado), SHP (São Paulo) e SHC (Rio de Janeiro), a vitória final sorriu para os descalvadenses por 3 x 2. Em uma barbearia do centro, Benno Rieckmann cortava o cabelo quando ouviu gritos de populares que avistaram um cavalo com uma dama montada em disparada no sentido da chácara do Sr. Cirylo Bortoleto. Tratava‑se da Sra. Laurinda, esposa do Dr. Glenan Leite Dias e o episódio acabou na morte desta Sra.. Tal fato foi considerado como o fim do pólo em Descalvado. Na realidade, o fim da era do pólo em competições à nível nacional na cidade correspondeu aos elevados custos que o esporte infligia aos participantes. Um deles era a manutenção dos cavalos crioulos, que eram os melhores e exclusivos da SHD, pois outros competidores sempre os machucavam com sua finas esporas ou artimanhas em seus tacos. Os anos 30  soavam mal para Descalvado. O preço do café, apesar da exposição mundial de 1933 não subia e o Brasil via‑se mergulhado numa profunda crise interna. A revolução de 1935 somente serviu para acelerar o golpe de Getúlio Vargas para 1937 ("O Estado Novo"). Os negócios das fábricas em Descalvado derivavam entre o mercado internacional e nacional. Eclode a II Guerra Mundial. A necessidade do brim é imperiosa aos europeus. A confecção de fardas militares, seja a verde‑oliva (dos alemães) como as de cinza‑chumbo (demais compradores) somente forneciam aos cidadãos locais a subsistência. Aos proprietárias da empresas, os lucros auferidos eram aplicados em outras paragens. Os negócios proporcionados aos doces caseiros, poderiam ser negociados ao nível da América Latina. Benno vai inaugurar uma fábrica de produtos climatizados, a partir da banana para exportação para a Argentina primeiramente. Depois, descobre que o negócio não é tão bom, pois os navios não tinham compartimento para produtos agrícolas climatizados. A primeira remessa para o importador argentino deu certo, mas a segunda, apodreceu no próprio porão do navio. Outra experiência desta vez mais pensada foi com uma farinheira. O milho produzido pelos pequenos agricultores locais foram a solução, produzia‑se maisena por um baixo custo e novos nomes da agropecuária nacional ouviu‑se na Fazenda Morro Alto: arrendatário, meeiros e parceiros. Mas a comercialização foi truncada pela Dureya, multinacional americana que ainda detém a marca "maizena". Sem condições de poder pagar os Royalties da utilização do nome e dessa marca, originou‑se a primeira marca descalvadense de mercado, a farinha "NORI" (abreviatura das sílabas No e Ri, final e início do seu nome e sobrenome). Para a NORI só restou sobressaltas. Como produtora de uma boa farinha de amido de milho, em 1941, a OTKER (o cabeça branca) iniciou grande compra dos produtos na NORI para salvaguardar sua produção de gelatinas e pudins pré‑fabricados. Aconteceu que a OTKER exportava a maior parte de sua produção para a Alemanha, que já estava há dois anos em guerra. E precisava de alimentos pré‑saturados e a fornecedora brasileira era uma base sólida. O negócio funcionou durante um ano, até Getúlio Vargas declarar guerra à Alemanha. Dessa declaração, sobrava ao empresário brasileiro que comercializasse com a Alemanha, sua posição de ser colocado na lista cinzenta ou até na negra do ditador, conforme as mercadorias enviadas. Isso significava que perderiam suas credibilidades junto ao órgão estatal máximo de crédito, o Banco do Brasil. Nada mais restava à NORI. OTKER foi honesto em avisar seus fornecedores. Extensas viagens de trens, carroças ou a cavalo nada mais adiantariam para desovar o grande estoque de farinha. O jeito foi aproveitar o mercado interno, através do FRIGOR EDER. Dominados pelos alemães e sem possibilidades de exportar do mesmo modo como a OTKER, desejavam o mercado interno como a maioria das empresas que queriam se fortalecer no Brasil, sem a presença alemã. O aproveitamento do resto da farinha foi investido numa grande criação de porcos, que não precisavam passar pela inspeção do frigorífico, dada a sua qualidade. O trem já não era mais o transporte básico, mais sim caminhões, visto a urgência de entrega das cargas vivas: doze horas de viagem, desde que bem preparados, desde Descalvado até o bairro de Santo Amaro na zona sul de São Paulo. A iniciativa durou pouco. Sem identificação de prováveis doenças. numa única noite mais de dois mil porcos morrem. A falta de vacinas, proporcionou a brucelose. Num íntimo de raiva, Benno que durante a Revolução de 32 nunca mandara atirar em ninguém, a não ser por defesa própria, mandara atirar nos urubus que cercavam as pocilgas. Estava terminada uma nova epopéia. Em 1947, a empresa OTKER mandara avisa‑lo que poderia reiniciar a compra de novas encomendas de farinha. Mas e a farinheira para produzi‑lá? E como ficavam as desculpas a quem parava em sua porta para cobra‑lo ou à sua mulher, quando de sua ausência, sobre as remessas de milho, quando estava em viagem para vender a produção? Que capitalismo participou então Descalvado que ninguém parece perceber ou se preocupar durante a história do Brasil Contemporâneo? O inevitável chegou com a história que veio. Benno Rieckmann desapareceu em 1947 no município de Americana, SP, onde está enterrado e a causa de seu desaparecimento é ainda, hoje, uma incógnita tanto para sua família como para seus associados e amigos.

 

CORONEL  ALCIDES JACOMO DEGOBBI (Benedito Sebastião Chiaretto)

            Nascido a 14 de outubro de 1919 em Descalvado, filho de Maria Cereda Degobbi e Albino Degobbi, o Coronel Degobbi foi Maestro do Corpo Musical da Força Pública do Estado de São Paulo, atual Corpo Musical da Polícia Militar do Estado de São Paulo.  Iniciou-se na música, quando ainda menino na cidade de Pirassununga como integrante da Banda de Música “16 de Julho”, regida por seu pai , com quem teve as primeiras lições musicais. A partir de então aprofundou-se cada vez mais neste mister, diplomando-se mais tarde em 1951 como Professor de Música pelo Conservatório Musical Francisco Manoel da Silva. Em 1939 ingressou nas fileiras da então Força  Pública do Estado de São Paulo, como soldado músico e após um ano, mercê de seus excelentes atributos profissionais era promovido a 2º Sargento. Em 1944 promovido a 1º Sargento, através de concurso, passou a desempenhar a função de “Clarinete-Solista” da Grande Banda. Em 1951 assumiu a direção da 2ª Seção, tendo em vista a sua promoção a Subtenente-Mestre. Atingiu o 1º Posto do Oficialato em 24 de maio de 1956, assumindo as funções de 2O Tenente-Maestro-Diretor do Corpo Musical da Força Pública. Este organismo compreendia à época a Banda Sinfônica da Capital e mais sete Bandas Regimentais, distribuídas pelos batalhões do interior do estado, somando desta forma, um efetivo de 370 músicos. Em 1958, já como 1º Tenente, consagrava sua Unidade como a Melhor Banda de Música em LP, através da conquista do prêmio “Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro”, conferido pelo Jornal “Correio da Manhã” conjuntamente com a Prefeitura do Distrito Federal, na época sediada no Rio de Janeiro. Tal sucesso deveu-se à gravação de seis LPs, pela Gravadora Copacabana, todos coroados de expressivos êxitos. Já no Posto de Capitão, foi convidado por autoridades federais para abrilhantar, com o Corpo Musical, as festividades do 1º  Aniversário de Brasília em 21 de abril de 1961. No evento, foi inaugurada a Concha Acústica da Capital Federal, seguido de concerto sinfônico e posterior desfile militar. Esta atividade, valeu-lhe o título de “Cidadão Candango”. Foi membro fundador do 1º Conselho da Ordem dos Músicos do Brasil em 1963. Em 1964, como Major, conduziu a Banda Sinfônica da Força Pública ao “1º Festival  de Bandas Militares”, que teve lugar na cidade de São Paulo. O concurso constou da execução de músicas clássicas e grande desfile cujo resultado atribuiu o 1º lugar à sua Corporação Musical. Semelhante feito, de grande repercussão à época, mereceu várias formulações elogiosas dos maestros Armando Belarde e Souza Lima, sendo ainda, destacado com louvor pelo Comandante Geral da Força Pública. De suas composições vale ressaltar as seguintes produções musicais: Santa Cecília, Gloriosa Força Pública, Brasilia e Brigadeiro Tobias de Aguiar. No entanto, de todas as suas obras, ocupa inegável posição de destaque, a música da Canção da Força Pública, que teve sua letra composta pelo saudoso Dr. Guilherme de Almeida, que se inspirou nos versos do “Cento e Trinta do Trinta e Um”. A canção foi lançada em 15 de dezembro de 1964, por ocasião dos festejos do 133º aniversário da Corporação, quando comandada pelo General João Franco Pontes, que incentivou a divulgação e obteve a sua oficialização através do decreto nº 44.439 de 21 de janeiro de 1965. Passou para a reserva remunerada em junho de 1966, mediante requerimento apresentado ao Comando Geral. No entanto a expressividade de sua obra continua merecendo honrosas homenagens da Milícia Bandeirante. Em 1982, o Boletim Interno nº 016 lhe concedeu a medalha comemorativa do Sesquicentenário do Corpo Musical, o que determinou o registro de seu nome nos anais do Histórico da Corporação. Em face do brilhante desempenho no cumprimento de sua missão, recebeu em 7 de outubro de 1988, a outorga máxima da Polícia Militar: a Medalha “Tobias de Aguiar” entregue em solenidade especial, perante autoridades civis e militares. No ano de 1964 esteve em Descalvado, sua terra natal, regendo a Banda da Força Pública do Estado de São Paulo, nas festividades de setembro, quando foi homenageado pelo Prefeito Municipal  Professor José Ramalho Gabrielli, que lhe entregou em nome da comunidade uma escultura representando o busto de Carlos Gomes, obra do artista descalvadense Genésio Spanghero.

Descalvado teve mais um filho que integrou as fileiras de músicos da Banda da Força Pública, inclusive tocando na apresentação da mesma em Descalvado no ano de 1964, foi Edwaldo Barbosa.

 

MARILY (Antenor Ramos para Descalvado em Revista de 08/09/75)

            As experiências  promanadas dos séculos até os dias atuais, repletos de turbilhões de toda espécie, tem nos demonstrado e nos afirmado, eloqüentemente que, qualquer cidade, por pequena que seja, com boa água, clima e povo ordeiro, para progredir materialmente, basta possuir uma indústria que outras virão por imperativo de atração. Essa preliminar nos aflorou à mente e da mente para o nosso querido “O COMÉRCIO”, pelo fato de termos conhecido, usado e reputado ótima a bananada MARILY de Descalvado. Não se trata de propaganda recompensada direta ou indiretamente porque nem siquer conhecemos os seus fabricantes; mas sim, de puro idealismo jornalístico pondo em merecido destaque as boas indústrias que valorizam os nossos realizadores e a pátria. Essa é a missão da legítima imprensa que é aquela de zelar pelo bem servir à população, como o nosso “O COMÉRCIO” fez com relação aos peixes deformados e mortos devido a poluição das águas do Rio Mogi-Guaçu. São esses órgãos de publicidade que alegram uma cidade, que se transfiguram na “LUZ DO MUNDO”, na abalizada opinião do eminente escritor Victor Hugo, já no seu tempo. Vê-se, claramente, no caso do Rio Guaçu que é assunto que não depende diretamente do atual Prefeito Dr. Tomás Vita, porque senão já teriam sido tomadas as devidas providências. Mas, voltando-se ao que diz respeito a indústrias, surjam elas onde surgirem, que proporcionarão infalível progresso e sucessos, como se constatou na criação dos cursos superiores em diversas cidades dos estados. Os homens precisam abandonar as guerras de extermínios, frutos da ganância, da paixão interior, para abraçarem a fraternidade internacional, produzindo tudo o que se torna realmente útil sobre todos os pontos de vista. Aos dirigentes da Indústria Marily, nossas felicitações.

 

NO BAR (Aparecida Donizeti Alfieri)

Cida Alfieri, foi a primeira poetisa descalvadense a publicar seus poemas, no livro “Tuas Lembranças”

 

Escondi-me atrás de um copo num bar.

esgotei a última gota que achei

dentro do copo, o nosso amor!

            Tentei rebuscar nosso passado.

            Se fui eu que errei, quando te deixei,

            prá caminhar só, alucinada...

Sonhei! Busquei em nós fios de esperanças,

querendo tecer nossa vida com lembranças.

Sonho alto demais?

Eu só queria teu amor... nada mais!

            E, nas lembranças deste amor,

            mergulhei na bebida, minh’alma, minha dor.

            Sentada à mesa da boemia,

            a ouvir cantores com a mesma sintonia.

E quando a lucidez passou por mim,

notei a cadeira vazia, a vida vazia, e eu.

Vazias... ou cheias de ilusões?

 

LIMITE ( Cacilda Gallo Guimarães – Via Verso 1995)

 

Há um grande cansaço rondando...

Conduzindo o mundo...

Lá no fundo

No âmago profundo

Uma ojeriza cresce,

Estreitando o grande espaço

Umbilical, hormonal essencial...

            Há um cansaço rondando

            Reduzindo as mentes...

            Lá no fundo

            As paredes se comprimem

            Uma fonte fenesce

            Diminuindo o espaço criador

            Intelectual, estrututal, essencial...

Há um cansaço...

Reduzindo tudo...

As mentes enegrecidas

Os corpos encolhidos, cimentados.

As visões tolhidas

Pelo desaparecimento dos ideais

Os afetos esquecidos, esbulhados...

O homem se verga, se entrega

Se delineia

Irresistivelmente...

No limite do cansaço.

 

NOSSA TERRA ( Mario Sebastião Bonitatibus)

Ah! Este rincão qurido!...

Terra d’Areias, terra do Descalvado!!!

Onde se encontra guarida,

Onde encontram resguardo...

 

Terra d’Areias, terras do Descalvado!!!

Rincão amigo, companheiro...

Onde o ousado caminheiro

Deita seu corpo cansado...

 

Vindo de longas paragens

Encontra nas terras d’Areias

Aconchegantes paisagens!

 

Vislumbra a beleza

Eterna da natureza

A declamar seu nome!

E este amante, recém-feito,

Apaixonado, enfeitiçado,

Lança a vida neste leito.

Deita-se e da terra tira,

Leite mel... filhos varões

Para seguir seu preito...

Finca o paterno caminheiro

Raízes profundas nesta terra,

Busca sua morada

No pé da serra

Neste chão de terra amada

Grita aos quatro ventos

Que agora tem abrigo

E que dantes – mil momentos –

Na tinha, só perigo!

Hora os Gês em defesa

Atacam o invasor e fogem,

Este se enfeza, fica.

Rouba o silvícola

Que apavorado corre

Sempre mata a dentro

O infeliz se consome!

Na fome, na dor... morre!!!

 

É o progresso chegando

Nestes confins da sesmarias

De Amador Bueno...

Agora já terra d’Areias

De José de Castilho...

A Florência de Jesus

Que deu trono e guarida

À imagem, Santa prometida

Com seu tamanho e peso

Pela saúde restabelecida

-         Senhora de Bêt’Lehém –

-         Sua Padroeira...

-         Sua companheira!

 

A graça é recebida!!!

Talvez o primeiro milagre

Nas terras dadas d’Areias!!!

Uma capela ergueu,

A Virgem entronou

Descalvado nasceu!!!

... vinda de terra distante

Tão fabulosa imagem

Perfeita pintura –

Em madeira, cerne nobre

Real textura!!!

“Virgem de Bêt’Lehém”

Quando está chegada

Em carro por bois puxado,

Adentra às terras de Belém

Belém do Descalvado

Tocado pelo negro Estevão

E por Benvindo acompanhado!...

 

Descalvado cresceu...!

 

Cresce simples, companheiro...

Encorpas o silêncio matreiro

Em seu berço semi-feito...

 

Mas dirás no tempo a que veio?!

“Vim para ficar!!! Crescer!!!

E em meu seio

De espaço infinito

Ter as estrelas do céu...

Ser um lugar Bendito!!!

 

Dar lar e ganho ao filho nativo

E não ter ao leu

O filho adotivo

 

Suplicar noite e dia

À Virgem Maria,

Ao Redentor:

 

“Abençoa nossa Terra nossa gente,

Nossos filhos – os Teus filhos!

Oh! Criador!

 

Descansa sobre nós a tua Luz

Pura de Vida: com a Fé

A caridade vem

 

Do alto e nos conduz

Como Santa Tua Verdade É,

Amém!!!


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